quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Pé no chão

Sempre que digo pra alguém que eu passei mais de dez anos da minha vida acampando nos finais de semana, férias e feriados, preciso explicar. Na verdade, eu adoro explicar. Porque eu nunca conheci outra criança, além daquelas lá do camping, que viveu com tamanha intensidade as coisas que nós vivemos.

Era uma vez, uma casa sobre rodas. Um trailler. E essa casinha, a primeira que meu pai comprara, era quase menor que a Caravan que nos levava até ela. Mas tinha tanta dedicação presente naquelas paredes de fibra de vidro. As cortininhas combinando com o estofado do sofá que virava cama, a pia do banheirinho sem chuveiro brilhando como diamante, o toldo que vinha de cima do trailler até o final do cimento de três por três, milimetricamente costuradas pelo meu pai. Sentado no meio do parquinho de diversões, com uma máquina de costura emprestada, ele dedicou dias e dias a cobrir nossas cabeças. Sempre.

E os amiguinhos. Um bando de crianças, uma de cada lado da cidade, unidas no interior de São Paulo com um só ideal: fazer do final de semana ou das férias as mais legais das nossas vidas.

Me lembro muito bem, até hoje, mesmo porque algumas amizades ainda sobreviveram ao caos da vida adulta: Vanessinha, a japinha da turma, um metro e quarenta e nove. Não ia crescer mais que isso. Beto, magrinho, com um tampão no lado direito dos óculos, dono do trailler maior e mais equipado, tinha até computador. Rodrigão, o mais velho, dono do jipinho, objeto de desejo das Maria-gasolinas-mirins. Carol, morena, era a mais maluca da turma, tinha uma chinchila que era o máximo e uma mãe que a fazia colocar abacate no cabelo todo dia. Ricardinho, o bebê Johnson da turma. Fabinho e Fabão. E muita gente que veio depois, veio e foi.

Meu primeiro amor, que me deu uma florzinha e disse que eu era linda bem na descida do escorregador, o primeiro beijo, com um menino, no carnaval, são lembranças delá. Assim como a lembrança do irmão da japinha correndo com a sua Caloi Cross: “Tha, sua mãe está doida atrás de você e você aí com esse menino!” . Aconteceram coisas horríveis, como o estupro de uma menina pelo filho do caseiro. As enchentes. O caso da abelha, eu picada na garganta pelo lado de dentro, jogando futebol ao gritar GOOOOOOOL, ou quando enchemos a cara e acabamos com a energia do lugar inteiro, tropeçando nuns cabos. Havia as brincadeiras dos copos, os jogos da verdade, os WAR, os banhos em conjunto no vestiário, os carnavais, as briguinhas, as noites na piscina, os bailinhos. Ahhhhhhhh os bailinhos. Havia piqueniques, a gente juntava toda comida disponível ou fazia as coitadas das mães cozinharem, pra gente enfiar tudo no jipe e ir pro lago, onde tentávamos pegar ovos de ganso do ninho. Havia as idéias mirabolantes, como quando coletamos todos os trevos de três folhas do mato e colamos numa cartolina com uma quarta folha falsa, cheia de cola tenaz, e vendíamos por dez centavos pros campistas adultos.
Também havia os campeonatos inter-camping onde até tijolo voava, em briga.E, mais tarde, as saídas em bando de carro para a Anzu, os casinhos mais fixos, as bebedeiras mais perigosas, o truco até seis da manhã, os churrascos-raves, as idas à pedra do vento só pra ver o sol morrer ao som de um violão.

Éramos todos irmãos, descobrimos muita coisa, lá. Meu respeito pela natureza, a escolha pelas pessoas puras, minha embriaguez ao sentir cheiro de mato cortado ou o barulho das cigarras à noite, meu medo de cobras, minhas alegrias mais intuitivas, meu amor por animais, minha necessidade de colocar o pé na areia ou na terra, minha ojeriza por urbanomania, tudo veio delá.

Mudamos de camping, de objetivos, alguns de ideais. Mas aquelas estrelas enormes no céu que parecia redondo, ao deitar no colo de alguém na quadra de tênis, jamais vão deixar de existir. Mesmo que hoje isso tudo tenha se transformado numa gigantesca fábrica de cimento de uma multinacional qualquer.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O assunto clichê, que não cansa ninguém, nem a mim nem a você.

Por amor a gente se humilha, a gente quebra o orgulho, a gente muda o conceito, a gente respira difícil, a gente esquece da gente.
Por amor, a gente finge, a gente se engana, a gente se ilude, a gente se força a viver ou a gente acaba com a própria vida, corta os pulsos, toma remédios que infelizmente não nos mataram, e graças a Deus que não nos mataram.
Por amor, a gente quebra as promessas que fizemos, a gente vai para onde nunca fomos, a gente apela para quem nunca apelou.
Por amor, a gente mente pra deus, a gente beija o diabo, a gente tenta fazer amor com quem não ama, a gente beija quem não quis beijar.
Por amor a gente se aproxima do céu e ao mesmo tempo do inferno. Por amor a gente odeia, porque o ódio é um amor que ficou doente, mas ainda assim, é amor.
Por amor, a gente fica mais legal para não sentir a dor que definha os ossos, os músculos, o sangue.
Por amor, a gente quebra as coisas ou a gente não se move por mais de uma hora. Por amor a gente procura não ficar parado um segundo sequer para não pensar no nosso amor.
Por amor nos tornamos anjos e assassinos, divinos e amaldiçoados, sensatos e ridículos. Por amor somos dois extremos. Por amor não sabemos quem somos. Por amor enfrentamos o mundo e nos ajoelhamos ante à ele, dando-nos como fracos.
Por amor a gente colhe flores, ou a gente as destroça nas mãos.
Por amor, quantos já não foram enterrados e outros renascidos. Quantos já não foram libertos e quantos não foram banidos? Quantos já não oraram e quantos já não choraram? Quantos litros de amor já não foram derramados sobre as malhas e não se enterraram na areia? Por amor, quanta coisa já não foi feita para ocupar a mente, quantos já não foram tolos, cretinos, dementes? Quantos não se mutilaram? Quantos já se odiaram? Quantos acordaram à noite e quantos que nem dormiram?
Quantas gotas de álcool? Gramas de nicotina? Tarja preta ou novalgina?
Quantos espelhos quebrados e copos reduzidos à cacos. E quantos porta-retratos não foram despedaçados?
Amor, a que me obrigas? Dor em diversas barrigas, frutos do nosso ventre! O quanto nos faz divinos e o quanto não nos faz gente?
Amor, que quando vidas gerou. E quantas delas tirou.
Amor que enternece os maus e que atraiçoa o são. Peso nos nossos pés, chagas nas nossas mãos. Que floresce flores nos túmulos e enaltece o nosso caixão.
Quantos homens por ti se despediram? E mulheres que jamais partiram? E crianças que já nasceram e outras nem se tornaram?
E por mais demônios e dementes, por mais frutos e sementes, por mais presos e animais, o amor nos faz escravos e ao mesmo tempo libertos. Faz-se tudo de errado, porém nada mais que o certo.
Nos faz santos e profanos
Nos faz acertos e enganos
E é por isso e nada mais, que nos tornamos humanos.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Cagada, vomitada e no Serasa

Problemas parecem ser os seres mais sociáveis do universo. Eles realmente nunca aparecem sozinhos. O bom é que os aprendizados também vêm em grupinho, o ruim é que colocados numa balança eles jamais vão ter mais peso do que os oponentes. Revisemos então as lições dos últimos dez dias.

1- Nem se Jesus reencarnar na sua frente e te pedir, não coma, repito NÃO COMA maionese que parece ter gosto de limão quando ela não foi feita com nada que continha limão. Muito menos se a situação ocorrer num dia de calor de 31 graus.

2- Aprenda a vomitar, sob o risco de ficar com a garganta, o peito e as costas doloridas por duas semanas. Ah e também aprenda as diferenças entre vômito de bebedeira e o de comida estragada. Elas são muitas.

3- Quando for passar um cheque, escreva, no canhoto, nome, celular, RG, medidas de roupa, tipo sanguíneo, orientação sexual e dados cadastrais completos do ser que receberá o cheque, ainda mais se um dia você estiver pensando em fechar sua conta. Por que? Porque certamente o energúmeno vai esperar seis meses pra depositar o cheque, quando a sua conta não mais existir.

4- Tenha muita, muita, acima dos limites eu diria, paciência pra falar com as pessoas da agência do seu (ex) banco, que deveriam ter avisado que seu cheque havia voltado. Antes do seu nome ir pro Serasa.

5- Entenda que moramos no Brasil. E que se você não quiser virose, queimadura de água viva ou coisa pior, deve pegar praia só na Europa.

6- Deixe seu namorado/marido te ver um caco, no banheiro. E ai você logo saberá se ele te ama mesmo.

7- Avise o RH da empresa que você acabou de entrar que seu nome está sujo e explique. Porque se fôr pega no flagra, podem achar que você é estelionatária.

E daqui em diante, eu como lentilha em cima da cadeira, pulo as sete ondas nem que seja do chão no chuveiro, vejo a retrospectiva do ano e visto só roupas novas e branquinhas no dia 31 de dezembro. Assim pelo menos tenho alguma esperança de que a minha primeira semana do ano não envolverá crime, suco pancreático ou os dois. Sai, Zica.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Círculo aconchegante

Ouvi algumas vezes, em algumas palestras e publicações sobre motivação ou liderança, uma expressão: zona de conforto. Na maioria das vezes o que se diz sobre ela se resume a: saia já disso. Fiquei pensando que esse pode ser o mal que me acomete no momento. Digo isso porque a tal zona de conforto é tão quentinha e gostosa de permanecer...

Tem gente que não gosta de mudança. É metódico, pé-no-chão, apegado, chama do que quiser. Já percebi que me falta um pouco dessa acomodação na vida. Que perfeito seria se eu gostasse de fazer todos os dias a mesma coisa, falar as mesmas coisas e com as mesmas pessoas, dominar algumas tarefas profissionais simplesmente por fazer todo dia igual e roboticamente. Seria bem bacana ser um pouco robô.

Já ví que até agora, não deu. Sempre mudei quando percebi que chegava o momento da estagnação, emocional, profissional ou as duas juntas (mesmo porquê não se separa pessoal do profissional, é a mesma vida, certo?).

A única coisa, que talvez seja o lance que vicia nessa tal saída da zona de conforto - não me pergunte a razão - é a exposição, o chute pra fora do mundo que se leva, muitas vezes não é fácil passar vergonha, se abrir, admitir o que falta, mesmo sendo tão necessário pra aprender e viver outras coisas que podem agregar muito além dessas pequenas casualidades do começo. Medo, que bosta de sentimento. Será que é necessário em pequenas doses?

A sorte é que tem as pessoas. Bichos que te ajudam a passar por tudo nessa vida e ainda rir. Roboticamente ou não. Que bom, né?

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Os Espinhos da Rosa Luíza.

À Luíza (obviamente).


A idéia da velhice assusta? Ah, sim...assusta! Por mais que sejamos jovens, alegres, de bem com a vida e possamos afirmar que a velhice trará sabedoria e que, lá pelos setenta anos, estaremos ainda cheios de energia, se pararmos pra pensar, a velhice assusta!
Conheci tantos idosos que traziam no olhar um brilho indescritível, e tantos outros que neles carregavam a amargura de verem os seus corpos resumirem-se a amontoados de matéria gasta, enquanto a vida e a juventude da alma eram a mesma de muitos anos atrás. Pela tristeza de verem a virilidade de seus corpos se esvaindo, tornaram-se tristes e frustrados, verdadeiros ranzinzas e mal-humorados.

Um exemplo de que a velhice assusta pode ser expressado na frase que minha avó deixou escapar sábado passado, no metrô. Ah, dona Lola, uma das pessoas que mais admiro! Eu nunca quis ser alguém além de mim mesma, nem quis ser parecida com quem quer que seja. Nunca invejei qualquer outra pessoa por ter coisas que eu não tenho, ou ser algo que não sou. Mas a minha avó Luíza, a Dona Lola... Ah, com ela eu quero parecer com ela quando tiver meus setenta anos de idade. Ou melhor, setenta e dois. Essa é sua idade, mas quase sempre vejo em seus olhos o olhar de menina que ainda brinca de pular corda na rua e ver o bonde passar na Avenida. Olhar de garota nova que se deslumbra com o abrir das rosas na primavera e faz quase parar o tempo quando o assunto é um céu azul isento de nuvens, iluminado por um sol esplendoroso.
Dona Lola! Quem não gosta dela no bairro da Mooca? Idosa? Sim. Seria hipocrisia dizer que não. Mas velha, nunca! De pele gasta, mas de alma quase recém-nascida. Alma que se deslumbra feito criança, mas que carrega em si a sabedoria do tempo e da natureza.

Ah, Luíza, que sábado chega aqui em casa sem aquele sorriso costumeiro nos lábios e sem a alegria espontânea de contagiar até mesmo uma pedra. Luíza, que rumo ao metrô me fez uma observação, a de que não precisa mais pegar fila para comprar passes por já fazer parte da terceira idade.“Isso que é vida, heim?!”, comentei, e ela me respondeu com uma amargura na voz, de um jeito que nunca presenciei em meus tão poucos anos de vida: “É, ser velha tinha que ter uma vantagem. Pra alguma coisa devemos servir”. Demorei para assimilar a frase à pessoa. Aquele ser humano admirável, otimista sempre, com orgulho de cada ruga e cada marca de expressão no rosto, que fazia sempre delas um propósito para viver melhor e sem preocupações, julgando sempre o tempo que lhe resta como o mais precioso possível, agora me dizia indiretamente que velhos não servem para nada, e que a única vantagem que possuem é a de não pegarem filas para os passes de metrô.

Passado meu estado de choque, meus olhos se encheram de lágrimas e pensei: É cruel. Cruel querer correr por um mundo que é nosso e não ter forças nas pernas. Cruel querer abraçar o globo terrestre tendo os braços fracos demais. Cruel querer dançar mais do que o possível, mas ter de se limitar na imensidão de um espaço gigante porque o coração não agüenta. Cruel não poder esbarrar mais forte em algo porque a pele de tão gasta, sangra! E o coração sangra mais ainda ao tentar se acostumar ao fato de que o tempo passa e a gente passa junto com ele, e não há corda e nem força que nos prenda aqui, no dia de hoje, e que o presente, infelizmente, em um segundo já é passado.

Como seres humanos, não estamos imunes a isso. Augusto dos Anjos disse em um de seus poemas cruéis e fatídicos, porém assumidamente realista:
“Agora, sim! Vamos morrer reunidos, Tamarindo de minha desventura, Tu, com o envelhecimento da nervura, Eu, com o envelhecimento dos tecidos!”
Sempre pensei que minha avó não merecia fazer parte desta estrofe. Mas, por mais triste que seja, a elasticidade da pele outrora jovem agora é tomada pela flacidez da pele vulnerável a qualquer esbarrão. E amanhã, inevitavelmente, todos nós seremos assim. Mas dona Lola não se deixa derrubar por momentos pessimistas de amarga reflexão. Ela sente o coração apertar, mas não apenas se conforma, e sim continua seguindo seu caminho com a cabeça erguida, nunca desprezando a beleza de um fim de tarde e o milagre do ar em seus pulmões. Mais ativa que eu, com seus setenta e dois anos de idade, viajou com a terceira idade muito mais do que muitos jovens e agüenta uma seção de hidroginástica toda semana, muito mais que muitas pessoas conseguem fazer.

Toda rosa mostra-se sensível, frágil e bela. Possui espinhos para se defender, mostrando-se imponente, provando a todos que fragilidade não significa fraqueza. Naquele sábado, vi que dona Lola continua sensível, bela e cada vez mais frágil, e embora infelizmente o tempo não a prive do envelhecimento da nervura e de seus tecidos, e, infelizmente, por conta disso, vez ou outra um espinho seu torna-se fraco e tende a cair, posso observar que a diferença entre ela e uma rosa é que a fortaleza dos espinhos está na sabedoria de seu olhar. Por mais que, por alguns instantes, ela se lembre do tempo que passou e venha a lamentar isso vez ou outra, por mais que uma gota d’água tente apagar a chama da vivacidade que ela carrega dentro da alma, é este o motivo pelo qual eu quero tanto ser parecida com ela, e o motivo pelo qual, além de ser neta, sou uma grande fã: Ainda está para nascer a pessoa que conseguirá arrancar os espinhos desta rosa chamada Luíza.