sexta-feira, 14 de junho de 2013

O discurso reproduzido

Nas minhas aulas de psicologia social -que eu amava- a melhor parte era quando podíamos argumentar sobre alguma posição que tomávamos para depois entender a teoria do que estava por trás. Eu sempre fui muito apaixonada por discussões, análises, pontos de vista e explicações. Acompanhando o que está acontecendo nas redes sociais, onde alguns mil jovens de classe média opinam sob diferentes óticas, vejo que existe um ponto super claro frente aos acontecimentos dos últimos dias: a classe média está dividida. Sabe aquela coisa, dividir para conquistar? Então, pra mim, fomos conquistados. Mas por quem? Na ditadura, o controle era obtido por meio da força bruta, da ameaça e punição física e tortura mental. Hoje, acredito que o controle é obtido por meio do desejo. Reparem: tudo na mídia te diz que você pode mais, deve ir mais além, tem que possuir mais coisas, ter mais bens, um carro mais fudido, uma aparência mais legal, viajar mais. É basicamente o desejo de pertencer a uma classe social mais elevada, ou pelo menos, poder ter e gastar dinheiro como esta classe mais elevada o faz. De tanto ouvirmos e assimilarmos este discurso, começamos não só a aceitar que devemos pertencer à classe dominante, como começamos a PENSAR como ela. Me explico através dos principais argumentos que ouvi contra as manifestações que estão rolando: 1)Não sabe nem votar, quer se manifestar PRATICAMENTE METADE da população brasileira é de classe econômica baixa ou baixíssima. A classe D tinha 51,7 milhões de pessoas, e a E, 43,3 milhões em 2010. Somadas, são 95 milhões de pessoas(dentre 190.755.799 de habitantes, dados do Censo). 16% dos brasileiros não sabem ler nem escrever, isto sem contar os analfabetos FUNCIONAIS, que são a grande maioria e não fazem parte desta conta. Estas pessoas não tem tempo, ferramentas e nem foram acostumadas a pensar com senso crítico sobre muitas coisas. Quando são classificadas como "alfabetizadas", não conseguem interpretar um texto. Lêem, ouvem, mas não entendem o todo. Acabaram de conhecer a internet e a utilizam de forma lúdica, não informativa. Como esperar que votem "direito"? Aliás, o que é votar direito? Até hoje tem gente de classe média alta que diz que votaria no Maluf novamente. E mais, votar "errado" não exclui o direito de alguém sair às ruas e se manifestar contra algo que o seu governo fez. Até se tivesse votado "certo" este direito estaria preservado. Ou seja, o discurso da classe dominante está sendo reproduzido sem que se olhem os dados reais, sem que se veja o nosso país como ele é. O Brasil, EM SUMA, não é composto de gente que gasta R$200 reais num jantar, isto é a completa exceção da regra. Por outro lado, no sistema partidário em que o país se encontra, não faz tanta diferença qual partido está no poder. Direita, esquerda, todos são passíveis de alianças e conchavos (inclusive vivem delas) para simplesmente conseguirem fazer parte daquilo tudo, não estamos falando nem de aprovar projetos, hein? Somente de sobrevivência no poder. As grandes corporações e seus grandes lobbies sustentam o governo, que por sua vez é obrigado a sustentá-las com leis/emendas/acordos que as apoiem. Políticos com grandes corações, idéias e boas intenções acabam se perdendo neste mar de burocracia errada, onde se um cair, todos caem. Ok, os gastos e pra onde vai o orçamento varia de administração para administração, mas isto depende muito mais das alianças daquele partido do que da ideologia partidária em si. E o sistema vai se auto-alimentando. 2)O que são R$0,20? E mais, os valores devem ser reajustados de acordo com a inflação. De acordo com últimos dados do governo, é da classe média todo brasileiro cuja renda familiar per capita esteja entre R$ 291 e R $1.019. A cesta de gastos é: ~30% com moradia (IBGE), 20% só com cesta básica (FIA), 15% com transportes (IPEA). O resto é gasto com saúde e educação. Calculem o valor em cima desta renda média e me digam se ainda é pouco este aumento. O dado mais alarmante: ~40% do mercado de trabalho ainda é informal no Brasil (Ibre-FGV). Estes salários NÃO SOBEM DE ACORDO COM A INFLAÇÃO, mas os gastos pessoais e familiares, sim. Sem contar que 6% da população ainda é desempregada. E ainda sobre o argumento da inflação: acabei de ler um texto meio complexo do Movimento Passe Livre, que dizia que de 1994 (ano de início do Plano Real) até hoje, a passagem deveria custar R$ 2,16 para os ônibus e R$ 2,59 para o Metrô e CPTM. Não tenho como fazer os cálculos para comprovar, mas vale a reflexão. 3)Eu pago imposto e tenho direito de ir e vir sem precisar esperar a manifestação passar Sem dúvida, porém as pessoas também tem o direito de sair às ruas e, consequentemente, impedir o trânsito em alguns lugares. Também está na contituição. O impasse seria resolvido se as manifestações ocorressem em vias menos cheias, certo? Ou em outros horários? Ok. Alguém se lembra com clareza do que a manifestação das Vadias tratava? Lembra de ter visto alguma notícia na Globo sobre ela? Não, certo? Simplesmente porque aconteceu de final de semana, com menos pessoas, sem atrapalhar a ida e vinda de ninguém. NÃO DEU NOTÍCIA. Não adiantou nada. No mais, quem estava lá também paga imposto. Por isso mesmo tem o direito de exigir que seu dinheiro seja gasto da melhor maneira que se possa gastar. Vamos lembrar que as manifestações não ocorreriam um segundo dia (parariam no primeiro) se as reinvidicações fossem atendidas. POR QUE IR CONTRA OS MANIFESTANTES E NÃO CONTRA O GOVERNO QUE NÃO OS ATENDE? Como eu disse, estamos divididos, focalizando a raiva pro lado errado. Outro fato: não vejo ninguém tão puto quando a F1 ou o carnaval fecha a marginal e deixa todo mundo tendo que desviar o caminho e gastar 1h a mais pra chegar em casa. Não vejo ninguém tão puto quando chove e para todo o trânsito até dez da noite, porque o governo que ficou 16 anos no poder em são paulo não arrumou uma maneira de resolver o problema dos alagamentos e nem do transporte: o Metrô de São Paulo é considerado pela CoMET (Comunidade de Metrôs) como o mais lotado do mundo, com 10 milhões de passageiros por quilômetro de linha. Mais uma vez, o discurso da elite sendo reproduzido por você, que é do povo e também fica parado em alagamento. Você não tem helicóptero, lembre-se. 4)Bando de vândalos! Com violência não se chega a lugar nenhum Ninguém em sã consciência quer que um ser humano se machuque. Nem manifestantes, nem policiais, nem transeuntes, ninguém. Agora vamos pensar: o que faria um ser humano sair de suas cobertas numa noite geladinha pra ir vandalizar lojas e ônibus na paulista? A vontade de tomar borrachada de graça? Ou será que as coisas acabam saindo do controle? Ou ainda será que só alguns são baderneiros e o resto é gente que está lá porque realmente acredita que o país só vai mudar se formos às ruas? Temos que olhar também o lado de quem apanhou de graça de policiais (assisti a pelo menos 5 videos e li cerca de 10 testemunhos, até de repórteres da Folha). A polícia não deixou os manifestantes entrarem na Paulista, mas o que foi pior? Vejam que o trânsito não melhorou ou piorou por isso, pois a paulista SE MANTEVE FECHADA. Se tivessem deixado os manifestantes entrarem, a violência não teria existido, ou seria bem menor. Sigam o raciocínio: sem violência, a mídia não teria como desacreditar a manifestação...a violência não só foi só esperada, como foi PLANEJADA. O discurso da violência deve ser analisado de maneira histórica também. Nenhuma mudança radical chegou a acontecer sem que muitos se ferissem. E não adianta usar o argumento do "mas os caras pintadas tiraram o Collor sem violência", porque meus caros, quem tirou o Collor foi a Globo, que apoiou todas as manifestações. Puxem os videos pela internet e lembrarão. 5) Tem coisas mais importantes para nos manifestarmos contra Concordo. Tem que mudar o código penal, tem que fazer a reforma partidária, tem que se unir contra a corrupção, tem os impostos que comem quase trinta porcento da renda na fonte e não traz nada em troca. Mas gente, não é um começo SE CONSEGUIRMOS NOS ORGANIZAR PARA ALGO? Isso nem era possível há alguns anos. A internet trouxe um poder para as nossas mãos, e ao meu ver é a ferramenta mais poderosa de organização que as pessoas tem. Vamos começar com coisas menos importantes e apoiar a evolução disso tudo com um olhar mais analítico e menos alienado? PS* Sou pesquisadora, trabalho há quase quinze anos coletando e analisando dados. PS2* Eu estaria lá ontem se não tivesse grávida de oito pra nove meses. Meio de longe, porque tenho medo de borrachada, mas estaria.